1. Comecei a ler com três anos de idade, e nunca mais parei. Em algum dia do ano de 1992, minha querida vó Salma, mãe da minha mãe (dona de uma sabedoria imensa), me presenteou com uma cartilha. Sempre repeti o termo sem ter me deparado novamente com algum material que assim se chamasse, mas parando para pensar a respeito e pesquisando, descubro uma definição para cartilha: “recurso instrucional impresso, que serve como material de estudo, facilita e fixa a aprendizagem”. Há ainda um artigo em inglês que traduz cartilha para “alphabet book”. Era isso mesmo: um material de aprendizagem de alfabetização. Lamento não ter guardado tal cartilha, mas tenho em mim nítidas as memórias de suas páginas, com descrições clássicas do tipo B + A = BA, e coisas do tipo.
2. Passei a minha vida inteira questionando por que as crianças começam a ler tão tarde, lá pelos seis ou sete anos. Recentemente conheci uma pedagoga de muito talento que me explicou que é melhor que seja assim. Não entendo exatamente as razões, mas tendo a confiar em sua experiência. Apesar disso, eu duvido que, se tivesse um filho, conseguiria me segurar de não ensiná-lo mais cedo. Com meus três anos de idade, então, comecei a ler gibi. Muito gibi, e assim foi, possivelmente, até uns oito anos de idade. Devo agradecer também muito à minha mãe que, apesar de não ter dinheiro sobrando à época, nunca deixou de me comprar gibis. E apesar de eu ter juntado muitos, eu devo ter relido cada um deles coisa de cinquenta vezes, sem exagero. E neste momento noto que já praticava um dos grandes insights de Nelson Rodrigues, que nos diz: “Por tudo que sei da vida dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a releitura.”
3. Uma parte essencial de minha constituição, portanto, diz respeito a um menino de seus cinco anos, sempre já mais quieto, lendo seus gibis no fundo do caixa de uma panificadora em que minha mãe trabalhava (exatamente como caixa) no início dos anos noventa. Outras memórias: estou no Jardim II, com meus quatro anos, e sou chamado à frente da classe para ser mostrado como exemplo de alguém que já sabe ler. Na minha cabecinha eu já entendia o quanto isso era indevido, já que as demais crianças não haviam tido a oportunidade de terem sido alfabetizadas em casa, como eu fui. Qual era o sentido daquilo? No Jardim III eu já lia com muita fluência, e já eram ensinados os primeiros passos de alfabetização. O que tornava a coisa ainda pior. Eu sentia as crianças sendo pressionadas a pular etapas para atingir um modelo de criança que teve outro tipo de experiência. Hoje eu consigo entender o tamanho do despreparo que pode ocorrer com uma jovem moça que é colocada diante de crianças para educá-las em um ambiente escolar.
4. Anos mais tarde, em 1997, escrevi um texto na aula de português sobre a história de uma escova de dentes que havia sido separada de sua mãe. Terrível o texto, mesmo para alguém de oito anos. Eu ainda o tenho aqui, e é realmente muito ruim. Mas me lembro de ter sido muito elogiado pela professora nesta ocasião (o que talvez signifique que os das outras crianças eram ainda piores). Eu conheci meu amigo-irmão Tutumi neste ano, em 1997. Mas foi a partir de 2000, já na quinta série, que travamos uma parceria para escrever textos nas aulas de português. A professora era a querida Eliédna, odiada por muitos, mas amada por mim. Além de ela sempre ser minha puxa-saco, devido às minhas habilidades com a matéria, eu realmente gostava da aula dela. E me lembro com carinho de suas construções de frases com objetos diretos e indiretos e tudo o mais. Coisa estranha, agora me lembro, é eu saber até hoje, de forma decorada, a lista com todas as preposições do nosso idioma.
5. Mas como eu ia contando, com o Tutumi formei uma dupla de alta qualidade para produções de textos. Ele com sua imensa criatividade e bom humor, eu com a habilidade de traduzir para a forma textual. Raramente não tirávamos a nota máxima, e a confecção dos textos era extremamente divertida. De sair da aula com a barriga doendo, de tanto rir. E agora, enquanto escrevo essas memórias, questiono se não vem daí nossa ligação tão forte: uma amizade construída sobre bases literárias. Mas o que eu queria trazer com tudo isso é o seguinte: de repente, fui parar na faculdade de Engenharia Mecânica. Qual o sentido disso? Não é que eu me considere um gênio das letras, e lamente por algum talento por anos desperdiçado. Não é isso. Mas a questão é que é raríssimo observar em uma criança, de forma tão precoce, onde está seu sentido de vida, ao menos na parte do sentido que toca o trabalho que viemos desenvolver no mundo. O que houve? Por que esse salto?
6. Bem, o “problema” é que, além de ir muito bem em português, eu ia muito bem também em matemática. Devo confessar que a escola para mim sempre foi fácil, do início ao fim (o que mais tarde viria a me trazer graves problemas na faculdade, até eu descobrir que lá era necessário estudar com um afinco muito maior). As aulas de português e matemática eu assistia porque gostava, enquanto durante as aulas de todas as outras matérias eu só brincava. Não prestava nenhuma atenção. Para ir bem nessas matérias renegadas, eu desenvolvi meu próprio método: no dia anterior da prova eu escrevia a mão um enorme questionário, com as perguntas e as respostas; e no dia da prova eu acordava cinco horas da manhã e lia aquele material até a hora de ir para a aula. Descobri cedo como aproveitar minhas características: escrever para aprender, e aproveitar o quanto minha mente é muito mais aguçada ao despertar do que no restante do dia (essas crônicas, por exemplo, são sempre a primeira coisa que faço ao despertar).
7. Fui da primeira geração da minha família, por ambos os lados, a entrar na Universidade. Meus pais, tios e outros familiares não tinham condições de me dar uma orientação sobre que faculdade fazer, porque nunca haviam estado lá (meu pai até chegou a iniciar duas graduações, mas desistiu cedo de ambas). Recebi desde cedo a pressão para, não só passar em uma Universidade pública (eu nunca nem tentei vestibular em particulares), como também entrar em um “curso bom”. Neste contexto, os únicos cursos possíveis eram: Medicina, Odontologia, Direito, ou alguma Engenharia. Nunca ocorreu a hipótese de fazer outro curso que não fossem esses. O resto era “curso para ser pobre”, segundo o parco conhecimento que chegava a mim a respeito do tema. Nunca alguém me explicou que existe a possibilidade de uma carreira acadêmica, que é bem remunerada em qualquer área do conhecimento. Nunca ninguém me disse que eu tinha um talento acadêmico. Por eliminação, fui parar na Engenharia Mecânica. Depois, fui fazer o mestrado, o que foi muito facilitado pela minha habilidade com a escrita.
8. Até que, com 27 anos, decidi largar completamente a área. Foram duas graduações, um mestrado, e um ano dando aula para o curso técnico em mecânica. Como já estava me sustentando com o comércio, decidi dedicar o tempo livre para estudar os temas que realmente me interessam (que acabei descobrindo no meio de todo esse percurso): Psicologia Analítica e Literatura. Por muito tempo convivi com certo arrependimento de, ao invés de ter feito dois cursos na área de tecnologia ao mesmo tempo, ter cursado Letras e Psicologia. Ou ao menos um deles. Mas o amadurecimento me trouxe o entendimento que talvez tenha sido melhor assim. A pessoa que eu era com dezessete anos talvez tivesse estragado tudo. Com essa idade, eu não teria levado a sério as coisas como mais tarde comecei a levar. Não teria feito de tais estudos a parte central da minha vida, e teria seguido me preocupando com a participação nos bares e festas universitárias, como fiz durante meu tempo na faculdade de Engenharia. Na maior parte dos meus dias, portanto, vejo um grande sentido em tudo. Como no livro best-seller atual A Bilbioteca da Meia-Noite, que li recentemente, do grande livro dos arrependimentos vamos aprendendo a transformá-los um por um, observando o significado por trás de coisas que na atualidade dos fatos acabamos por não compreender. É a forma mais sublime do amor fati de Nietzsche.
05/03/2023
Olá, querido Nikolas!
Tem sido bastante prazeroso acompanhar suas crônicas. Tanto pelo estilo - evidencia um diário reflexivo, querendo beirar um desabafo epistolar - quanto pelos posicionamentos, que vem ao encontro de tantas coisas que eu também gasto tempo a pensar.
Neste capítulo, ainda me ocorreu uma curiosa identificação com os relatos de sua alfabetização e experiência escolar, que só não são mesmo idênticas às minhas por conta de pequenos detalhes. Por exemplo: eu quase nunca estudava em casa para as disciplinas ditas "renegadas" e jamais me daria ao trabalho de montar questionários pré-prova, pois a minha melhor amiga da época era muito generosa e fiel ao seu trabalho de fazê-los. Bastava-me uma rápida leitura antes de bater o sinal. Então revezávamos os lugares de primeira e segunda da turma, ambas inteligentes, ela a mais esforçada e eu a mais ligeira.
Da escolha profissional, acredito que nossas habilidades podem compor um conjunto muito diverso, mas muitas vezes não são aquelas óbvias que ditam a nossa vocação, como ser bom em português ou em matemática. Penso que alguém pode encontrar uma ocupação mais feliz se descobrir sobre suas características emocionais e sensoriais (que tipo de estímulo o motiva, para além do campo ou conteúdo). Ah, e os valores e sentidos mais subjetivos também têm grande peso.
Um abraço!