Dias atrás, tomei um susto ao me deparar com uma placa de rua. Coisa rara, essa placa apresentava um mini descritivo do personagem que dá seu nome. Eu não me lembro de já ter visto outra placa assim em Curitiba. E ela não estava presa em poste de rua, como um dia a prefeitura passou a fazer, de forma padronizada. Estava em muro de casa. Em vez de azul, como as modernas, era verde, como as antigas. Eu imagino que seja de muitos anos atrás. Talvez por capricho do dono da casa, foi poupada durante a substituição pelas novas dos postes. Essa placa com o descritivo acrescenta outra camada de informação, ao levar o cidadão a se conectar com quem foi o personagem histórico homenageado. Já que tantos não são tão famosos. Ocorre que o susto tomado foi justamente por ser um personagem que eu conhecia. Mas não desde sempre, é claro. É coisa mais recente, da fase adulta da vida. Já a rua e o nome da rua me são familiares desde quando eu era criança. Na realidade, agora vejo, essa rua faz parte de um conjunto de ruas que formou o meu universo particular de uma fase da infância. Eu morava na Rua José de Alencar. E mais, morava ainda no Edifício O Guarani. Foi logo, portanto, que passei a relacionar o nome da rua ao personagem real, já que se tratava de um bem famoso mesmo para as crianças, que em algum dia ouvem falar de seu nome na escola. Para não haver dúvidas, ainda havia o nome de uma de suas principais obras. Quando eu saía para ir à escola, que era perto, eu virava à direita na Rua Francisco Alves Guimarães. Ao contrário da José de Alencar, que além de rua era escritor brasileiro importante, a Francisco Alves para mim era só rua. Não sabia e nem nunca me interessei em saber quem era o homenageado. Seguia adiante nela e cruzava a Rua Atílio Bório, outro que nunca soube quem é. E da mesma forma, ainda seguindo pela Francisco Alves, eu cruzava a Rua Schiller, mais um que não se aprende na escola, e que portanto para mim foi sempre só rua. Chegando à Rua Padre Germano Mayer, virava-se à esquerda nela, até atingir a Rua do Herval, que era a rua da escola. Na Rua Atílio Bório já moraram colegas da escola. Já houveram ali dois restaurantes que eu costumava frequentar com a minha mãe naquela época. Depois, quando estava na faculdade e voltava de ônibus para casa, eu preferia passar por ela, mesmo sendo um caminho mais longo, do que ir direto à Rua José de Alencar, pois por ali, principalmente à noite, a sensação de segurança era um pouco maior. Na Rua Francisco Alves Guimarães, por ser a rota principal, tenho muitas lembranças de infância. Bem como a Padre Germano Mayer, que leva a outros vários lugares, como ao shopping da região em que depois fui ter loja, e leva também ao endereço que hoje resido. Apesar de ser também a rua referência do colégio, já que diversas janelas de sala de aula dão para esta rua, em que certa vez pude ver um triste atropelamento estando em uma delas, a Rua do Herval é o endereço oficial do estabelecimento, e sempre esteve presente em materiais referentes ao colégio. Ruas com histórias do meu universo particular da infância. Apenas da Rua Schiller não tenho nada de marcante. A Schiller foi sempre passagem, nunca mais que uma referência, a rua que ficava entre uma e outra. Nada de importante ou marcante foi realizado nela. E ela chega aqui para o lado onde eu moro hoje, e continua sendo, mais de vinte anos depois, sempre rota de passagem, rua que se esbarra, que se atravessa para ir a outros lugares. E como eu contava, por esses dias, eu caminhei por ela, em exercício de contemplação. E foi nela que me deparei com a placa: “Rua Schiller - Dramaturgo, historiador, filósofo e poeta alemão - 1759-1805”. E foi ali que tomei o susto. Com certa descarga emocional, foi como se eu tivesse tocado um ponto carregado do passado, como quando nos lembramos de um trauma ou coisa parecida. Em falta de analogia melhor, utilizo essa, mas não foi em um sentido negativo, como se eu tivesse me lembrado de alguma cena que sim, houvera ocorrido naquela rua, e eu tivera reprimido, como fazemos, muitas vezes, com alguma cena traumática. O susto e a descarga emocional foram pelo rompimento de uma imagem cristalizada desde minha infância. De repente, de súbito, sem aviso, a Rua Schiller passou a ter outros contornos, que eu ainda não sei nomear quais são. A imagem interna da Rua Schiller se rompeu, se transformou. Incrédulo, talvez tenha falado em voz alta na rua vazia e fria de uma manhã de inverno: “Então era esse Schiller, o tempo todo?!”. Assim como se passa pela Rua Schiller ocasionalmente, quando se vai de lá para cá ou de cá para lá, se passa pelo nome do filósofo alemão na obra de Jung. Assim como faz uns 26 anos que passo pelas ruas desta região, faz quase 10 anos que perambulo também de lá para cá e de cá para lá na extensa obra do Jung. Tropeço no nome do Schiller quando percorro Jung, assim como tropeço na Rua Schiller quando me movo pelo Alto da XV, em Curitiba. No índice onomástico da obra, Schiller aparece em 33 partes de diferentes livros. Há um capítulo inteiro dedicado a ele no Tipos Psicológicos. Como pode, até aquele momento, eu nunca ter me dado conta que eram os mesmos? Se assimilo os ensinamentos de Jung com determinada parte do cérebro, com que outra parte assimilei meus mapas da infância, sejam os geográficos ou os sociológicos? Desde este susto, tenho me perguntado que outras coisas eu não vejo nem que pareçam tão óbvias. O que mais me está inconsciente a esse nível, que outros conceitos eu formei e cristalizei na infância, e que hoje só repito, sem questionar? Sim, há muitas coisas mais flagrantes, e que eu sei que certo dia questionei, assimilei, e até mudei, revi, refiz, tracei novas rotas. Sem dúvidas, as coisas mais grosseiras e evidentes. Em algumas passagens, Jung contrasta Schiller com Goethe. Se fosse a Rua Goethe, eu teria agido como sempre agi com a Rua José de Alencar. Por saber quem era Goethe desde bem mais cedo, pois muito mais se comenta dele e de Fausto, a rua teria duas camadas: por um lado seria a rua, mas acoplado à imagem da rua estaria o do muito mais famoso poeta alemão, que Jung coloca como sendo o lado extrovertido do par de personalidades da sociedade alemã da época. Goethe era o extrovertido, e Schiller o introvertido. Ambos os pensadores trocaram cartas e ideias, e Goethe reconhece em sua relação com Schiller uma personalidade oposta à sua, que lhe conferiu mais riqueza a partir deste outro modo de interagir com a realidade e com a vida. Diz Goethe em uma de suas cartas para Schiller: “Se lhe servi de representante de certos objetos, você me levou, da observação muito rigorosa das coisas externas e das suas relações, de volta para mim mesmo. Você me ensinou a observar com mais equidade a multiplicidade do homem interior”. Jung dá a seguinte definição: “O tipo introvertido se diferencia do extrovertido por não orientar-se principalmente pelo objeto e pelo dado objetivo, mas por fatores subjetivos” (Volume 6, parágrafo 691). Jung reconhece em Schiller, e também por isso lhe dá um capítulo todo de seu livro sobre o assunto, um gérmen desta divisão de atitudes psicológicas que ele faz entre extrovertidos e introvertidos. Schiller fez essa divisão a partir de sua observação da arte, e dividiu os poetas entre ingênuos e sentimentais: “O poeta ingênuo, diz Schiller, é natureza, o poeta sentimental está à procura dela”. Pelo exemplo da José de Alencar, eu já sei o que teria acontecido se a rua levasse o nome do Goethe. Mas o que seria da imagem da rua se eu fosse do tipo extrovertido? Será que, como introvertido, eu coloquei entre mim e a placa da rua todos os meus fatores subjetivos do mapa geográfico do meu mundinho da infância? E a placa da rua era mais meu mundo do que o mundo objetivo, até a ruptura que levou à realidade objetiva de quem, finalmente, era o personagem da Rua Schiller que, não surpreendentemente, era ninguém mais que o próprio Schiller? Sigo refletindo: que outros dados da realidade objetiva estão saltando à minha frente, todo dia, e eu não os vejo, obnubilados pelos dados da minha realidade subjetiva formatada com afinco nos primeiros anos da vida?
21/07/2025
Muito bom! 👏👏👏